criança não é pública

Adultos: afeto é o máximo, desde que eu queira também! #fik dik (*)

Adultos: afeto é o máximo, desde que eu queira também! #fik dik (*)

Filho e eu passeando rapidamente num shopping, à tarde, logo depois da escola. Não lembro bem da razão da visita, mas com certeza passamos por ali para comprar alguma coisa que usaríamos em seguida. Granola, arrisco. Tem uma loja de produtos naturais que vende pela metade do preço do praticado pelo supermercado mais próximo de casa.

Uma mulher, talvez uns 30 anos, pouco menos, trabalha numa loja de utilidades domésticas. É simpática e falante. Sempre tenta estabelecer um diálogo com o filho, que foge dela. Sempre foi assim. E suspeito que o interesse da moça pelo pequeno seja justificado exatamente por ele não gostar muito de papo com estranhos e, às vezes, reagir com rispidez à insistência alheia.

Bom, nesse dia, ao passarmos em frente à loja onde a mulher trabalha, Enzo foi pego de surpresa. Ela não estava lá dentro, mas perto dele no corredor, provavelmente voltando de algum lugar. A moça agarrou, ligeira, meu filho por trás e tascou-lhe um beijo na testa, à força, enquanto ele se debatia e eu protestava.

Satisfeita pela conquista, a moça ensaiou dizer alguma coisa, diante da minha surpresa-silêncio, mas foi interrompida antes mesmo de começar. Foi interrompida por uma criança indignada –com toda a razão– que, mesmo mais frágil em muitos sentidos, aumentou a voz e se fez ouvir até o final do que tinha para dizer:

–Eu nunca mais vou deixar você me beijar! Você nunca mais vai fazer isso! Nunca mais!

–Mas eu só queria fazer um carinho em você…

–Não, não queria nada! Você queria me obrigar! Carinho é diferente! Carinho é o que minha mãe faz em mim, e ela só me beija quando eu quero!

A moça desconcertou. E eu também. Por não ter sido eu a expor à mulher o adultismo e o desrespeito do que acabara de fazer. Pois a criança e seus sentimentos nomearam com clareza o que tinha acontecido. “Você queria me obrigar a te satisfazer, não queria me dar carinho, porque carinho pressupõe que eu consinta e também queira”. Voilà.

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Criança não é pública. Se você não tocaria ou beijaria, à força, um estranho na rua, por que acha que pode fazer isso com uma criança? Criança é tão sujeito quanto eu ou você. Para conversar, receber ou dar afeto, precisa consentir. Assim como eu ou você. Criança não veio ao mundo para satisfazer carência de adulto adultista.

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Sobre esse tema, recomendo a leitura desse e desse posts. O primeiro é do ótimo site Paizinho Vírgula!, do Thiago Queiroz, pai de dois queridos, sobre o absurdo naturalizado de se obrigar bebês e crianças a beijar, abraçar e se relacionar com todo mundo (como se nós, adultos, fizéssemos isso também…). O segundo é da roteirista Renata Corrêa, mãe, feminista, que pondera sobre riscos de, mais velhas, as crianças não conseguirem identificar com clareza seus desejos e limites em relação a afetos e sexualidade se, na infância, as ensinarmos a conceder e aceitar a aproximação sempre que um adulto quiser.

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(*) Imagem da genial ilustradora italiana Beatrice Alemagna. Veio daqui, projeto recomendadíssimo de entrevistas com ilustradores infantis bacanas. Vale a visita nem que seja pra babar nas ilustras. 😉

24 Comentários

Arquivado em gênero, parentagem por apego, reflexões

24 Respostas para “criança não é pública

  1. Achei interessante o texto. Confesso que nunca tinha pensado por esse ângulo acerca da “vinda da criança ao mundo para satisfazer as carências do adulto”, e tenho muito o que ponderar a esse respeito. Amo crianças, mas sou de uma época em que crianças não tinham direito a pensarem por si só, e “tudo o que o mais velho faz é certo”. Hoje percebo que isso não está sendo muito eficiente na minha luta com os cuidados da minha mãe – com Alzheimer… Ela é mais velha, portanto muitas vezes me pego concordando com ela em coisas que não devia… Bem difícil isso…

    • Imagino sua situação. Minha avó paterna teve Alzheimer e realmente é difícil, complexo, doloroso. Muitas emoções se misturam, e os papeis se confundem. Particularmente acho bastante doído assistir aos pais assumirem o lugar de filhos. Muito obrigada por ter compartilhado esse ponto de vista. Não tinha pensado nisso, em como essa forma de enxergar as crianças como sempre em posição de submissão, como você cita e como é senso comum (eu também pensava mais ou menos assim antes de ser mãe) pode ser perniciosa também para a relação pais-filhos na vida adulta. Mas refletindo sobre seu comentário, faz muito sentido. As crianças nascem tão inteiras e tão sujeitos como nós. Com o tempo, vão sendo “ensinadas” que não valem tanto assim. Essa agressão à autoestima e à autoconsciência pode nunca ser recuperada. Seu comentário me fez refletir. Obrigada! Volte sempre e desejo que encontre um jeito o mais confortável e bacana possível –para ambas– para lidar com sua mãe.

      Abraços,

  2. Ana

    Muito bom texto. Isso ocorre muito com familiares. Minha sogra tinha essa mania de fazer ao meu filho, carinhos que ele não queria. Eu também fazia cara de quem não estava gostando. Até que um dia tive que dizer, que não fizesse mais aquilo , que ele não estava gostando. Foi constrangedor, mas foi necessário. E querer que a criança converse e fique respondendo perguntas é muito chato. Parabéns por abordar esse assunto.

  3. Quantos anos tem o Enzo? Ele fala de como me sentia quando criança.

  4. Escrevi esses dias:

    Desconfio que os adultos odeiam as crianças precisamente porque desejam tomar os seus lugares. A diferença é que a criança, em sua liberdade anárquica e incivilizada, é infinitamente mais selvagem, alegre e potente do que esses adultos jamais conseguirão voltar a ser.

    • “infinitamente mais selvagem, alegre e potente do que esses adultos jamais conseguirão voltar a ser” 😀

      exatamente isso! se ainda existe algum resquício da potência humana, da natureza humana, da lindeza humana, é na criança “incivilizada” e selvagem que há. já leu um livro infantojuvenil chamado justamente “Selvagem” (Emily Hughes, Ed. Pequena Zahar – [http://www.zahar.com.br/livro/selvagem])? Recomendo. Abraços e obrigada,

  5. Escrevi outro dia

    Desconfio que adultos cobrem crianças de excessivos cuidados porque as odeiam em sua liberdade incivilizada de infante na vida. Resta a criança devolver sarcástica, perversa e, ainda assim, seguindo em frente vibrante, alegre, amorosa – tudo no mesmo pacote, civilizando-se, resistindo dissidente o quanto dá.

  6. Minha mãe sempre diz que eu desde pequena nunca gostei que outras pessoas tocassem em mim e se fizessem eu abria um berreiro… Ela e seus irmãos sempre foram na sua infância considerados objetos pelos seus pais… Minha mãe quando nos teve (somos em três) sempre nos deixou livre dentro dos limites que ela achava necessário, no nosso caso fazer nada de perigoso, nunca nos obrigou a abraçar, beijar ou ficar no colo de outras pessoas a não ser que por nossa própria vontade …. isso na década de 70, minha mãe tem hoje 72 anos! Ela sempre disse que criança tem consciência própria e são mais espertas que muito adulto pensa, pelo simples fato que elas não tem as amarras que nós temos como preconceitos, medo de ofender etc….

    • oi, Cristina, tudo bem?

      Muitas crianças não gostam desse contato forçado; conheço vários adultos que lembram do incômodo que sentiam nessas situações. E isso é o esperado, né? Qualquer um sentiria incômodo ao ser invadido e desrespeitado. Infelizmente, a forma como sua mãe foi criada ainda é prevalente nos dias de hoje. Por mais que a relação com as crianças tenha mudado (em geral porque os adultos estão infantilizados, mas estão loooonge de respeitar genuinamente seus filhos), ainda resta essa ideia de que criança é objeto, de que não tem subjetividade, de que é de alguma forma inferior. Uma pena. Perdem todos nessa lógica. Que felicidade imensa a sua por ter sido criada por uma mãe tão bacana! Respeito muito! Obrigada pela visita. Abraços,

  7. Mariana Müller

    Lendo algum dos posts indicados e pensando nesse assunto, que nunca tinha visto sob essa ótica aliás, fiquei com uma dúvida: como criar então crianças que não sejam mimadas, ao passo que elas devem ser livres para fazer suas escolhas? E em relação aos cumprimentos forçados em eventos familiares? Pretendo ser mãe em breve e gostei muito do tema!

    • oi, Mariana, tudo bem?

      Que bacana que você compartilhou sua dúvida. Às vezes é minha também, e acho que muitos pais têm questões semelhantes. Grata! 😉

      Não tenho uma resposta-padrão. São tantas variáveis que definem o comportamento humano (seja adulto seja criança). Mas acho que posso compartilhar com você um pouco das reflexões que fiz e do caminho que fui percorrendo como mãe em relação a essas dúvidas. Esse tema merece um post, que vou fazer pra breve, então tentarei resumir beeeeem, ok?

      Acho que é importante, em primeiro lugar, ter em mente que não existem só os extremos. Não se trata, portanto, de escolher entre a criança ser respeitada, ser livre, ser sujeito E ser mimada OU ser educada mas ser sistematicamente desrespeitada. Há tantas nuances. E uma criança respeitada, garanto, jamais será mimada (ou não será mimada POR CAUSA de ser respeitada).

      Em segundo, acho bacana refletir –eu fiz e faço isso sempre– sobre o que é ser mimada e ser sem educação. Um adulto precisa sempre dizer “sim” para ser educado? Você diz “não” e é educada, polida, certo? Por que isso não valeria para as crianças? Nos acostumamos a achar que criança que manifesta suas vontades, sua subjetividade, é mimada… Será que é mesmo? Ou será que nós é que, sem querer, inferiorizamos as crianças e as culpamos apenas por serem quem são? O que é ser sem educação para você?

      Acho perfeitamente possível uma criança dizer que não quer abraço ou beijo super educadamente. E adulto educado não insiste e respeita. É mais crítico que um adulto, supostamente maduro, que teve tempo e condições de amadurecer, não aceite um “não” de uma criança do que a criança em si dizer o “não” de uma forma considerada “não educada”.

      É preciso considerar o estágio de desenvolvimento da criança e não esperar dela mais do que pode dar. Uma criança pequena, de dois ou três anos, ainda não domina (nem precisa dominar) os requintes da vida social. Não é falta de educação, com essa idade, não cumprimentar todo mundo. É bom que não cumprimente. Faz parte do amadurecimento neurobiológico. É uma questão de evolução da espécie. Bebê e criança pequena são 100% dependentes dos adultos. Têm que selecionar em quem confiar. E, nessa fase, em que descobrem que “não são” a mãe, ficam mais arredios mesmo, mesmo em relação a adultos da relação das crianças. Por que forçar que cumprimentem e beijem, se é natural e desejável que não façam com todo mundo? O adulto, maduro, não consegue entender que a criança precisa desse tempo para discernir quem é de confiança e quem não é?

      A criança vai aprender a cumprimentar e ser gentil conforme se sinta segura e confortável pra isso. Pode apostar nisso. Também vai aprender com exemplo, observando o modo como os pais tratam os demais e como os pais TRATAM OS FILHOS. A criança aprende e absorve o modo como a tratamos. Se deseja um filho educado e respeitoso, seja, antes de mais nada, e sempre, educada e respeitosa com ele. Uma criança chega ao mundo sem noção de relações sociais. Vai aprendendo conforme vê os adultos. O único modo de ensinar como se faz é fazendo com ela, com a criança, e com as outras pessoas das relações da família. Vai demorar para absorver algumas coisas, porque a criança tem seu tempo de maturação, porque é natural que seja mais retraída em algumas situações, porque certas convenções sociais demoram a fazer sentido (lembre-se de que estruturas mais “novas” e “sofisticadas” do cérebro humano, justamente as das relações sociais, as mais “refinadas”, não estão prontas em crianças pequenas. Não espere justamente delas que sejam um exemplo de comportamento social).

      E, pra finalizar, criança “mimada”, em geral, é fruto de pais distantes, infantilizados, que não colocam limites que façam sentido, jamais são frutos de relações respeitosas. Uma relação respeitosa e equilibrada só gera relações respeitosas e equilibradas.

      Para criar crianças que não sejam mimadas, é preciso estar atento, presente, disponível, amorosamente, firmemente. É preciso colocar limites que realmente sejam necessários (que tenham a ver não com controle ou projeção de nossas raivas e medos, mas com necessidades reais, como segurança, regras sociais, não-violência, necessidade de descanso etc). E colocar esses limites de modo amoroso, sem bronca, sem raiva, firme. É preciso também aguentar o choro que virá, também sem raiva.

      Seu futuro filho vai dar chilique no supermercado? Ah, vai! Muitas vezes, não importa o que você faça ou deixe de fazer. Faz parte. Faz parte do desenvolvimento dele. Não ache que isso é ser mimado. A questão é, por exemplo, usando uma coisa que já aconteceu comigo e com Enzo: se não pode levar doce pra casa, não pode levar doce pra casa. Ponto. Esse é um limite que faz sentido pra mim, pois, como mãe, sei que açúcar se come só de vez em quando. É a saúde do meu filho. Bom, ele chilicou muitas vezes quando neguei doce no supermercado? Sim. E eu? Mantive o “não” com calma, paciência e esperei chorar o tempo que fosse necessário. Nesses processos, meu filho pode trabalhar a resistência à frustração. O problema aqui não é a criança chilicar, mas os pais cederem ao chilique ou o reprimirem com agressão. São as duas formas mais seguras de “mimar” uma criança.

      PS: nem sempre consigo fazer tudo isso, ok? Diria que tento na maioria das vezes, com sucesso em algumas e fracasso retumbante noutras. Mas o horizonte que persigo é sempre esse, de coração aberto.

      Recomendo uma passadinha aqui ó (esse blogue mudou minha vida de mãe): http://conexaopaisefilhos.com/ Recomendo também mais lidas no Paizinho Vírgula. Ele tem ótimas dicas de como educar com amor, sem desrespeito de espécie alguma.

      Espero ter respondido de algum modo (sou meio prolixa às vezes). E, ó, esse assunto super me interessa. Estamos aí, sinta-se à vontade pra continuar o papo, ok?

      Abraços,

  8. Bruna

    Você está criando uma criança adulta e nojenta, isso fará mal pra ele no futuro. Tenho apenas dó e espero nunca cruzar com pessoas tão arrogantes (e que querem passar a arrogância para os filhos) como vocês.

  9. Lucimar Goedert

    Achei esse post bastante interessante, identifiquei algumas atitudes do meu filho, principalmente porque muitas vezes, ao chegar em determinados lugares ele não quer cumprimentar as pessoas com beijos e abraços, e geralmente ao ir embora não quer dar tchau. Fiquei contente em saber que mais pessoas pensam como eu, que não devemos obrigar a criança a ficar beijando e abraçando quem ela não quer, ou no momento em que ela não quer.

  10. Gostamos tanto que publicamos na nossa fan page! Gratidão!

  11. Pingback: criança não é pública # 2 ou: o que é filho “mimado”? | mãederna

  12. marcela

    Nada mais chato do que assistir uma criança sendo empurrada pra fazer o que ela não quer, seja beijar, abraçar, brincar, falar. Quando eu era criança sentia muito isso: vai ser como os outros. Hoje eu tenho uma sobrinha e nunca insisto que ela me beije ou me abrace, ou que brinque comigo, mas uma tia faz isso, então vejo que a princípio a pequena até acha graça, mas logo começa a cansar e fica estressada. Muito desnecessário.

  13. Prema

    Nossa, Natalie, muito obrigada por esse texto! Dia desses vi sendo compartilhado no meu feed, li, e adorei! Mas hoje passei por algo que me fez chegar em casa e procurar seu texto para ler novamente e dessa vez compartilhar. Para não me sentir a “pessoa mais maluca do mundo que monopoliza o filho bebê”, porque hoje foi a gota d’água pra mim, e fiquei coma sensação entalada na garganta de que não pode ser certo que um bebê ou uma criança devam servir de brinquedo, ou objeto pra satisfação de carência afetiva de adultos, pior ainda em se tratando de adultos desprovidos de qualquer vínculo com a criança. Pra mim a coisa já começou na gravidez, com os assédios a minha barriga, e agora piorou muito com as mil mãos que invadem meu bebê sem qualquer cerimônia…

    • Eu que agradeço seu comentário!
      Os bebês são sempre os alvos preferenciais. As pessoas parecem achar que são objetos fofos para puro deleite alheio. É uma falta total de respeito e bom senso. Compreendo perfeitamente o que você descreve, comigo também foi assim. Uma vez, chegaram a morder o meu filho quando bebê, acredita? Morder! “Ai, que fofo, vou dar uma mordida!” Fico muito feliz e muito grata que o meu desabafo ajudou em alguma coisa. Bjos

  14. Vanessa

    Delícia de blog!!! Aprendizado constante!!!!

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