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do teatro pela mãe, do personagem amado e do discurso

Sábado, finzinho da tarde, corro com filho pro Sesc mais próximo. Vai ter teatro. Chegamos com a peça já no meio. Sugiro nos sentarmos num banco vago, logo ali. Filho prefere caminhar pela unidade, ir ao café, reparar nas cores das paredes e nos detalhes arquitetônicos do prédio. Ou simplesmente vagar sem rumo. Ok, vamos lá, teatro fica pra outro dia.

Numa das andanças, minutos depois, passamos novamente bem pertinho de onde a trupe se apresenta, e o banquinho vago continua vago. “Vamos sentar só pra ver um pouquinho? Vai que você gosta…”. Filho diz que sim com a cabeça, nos acomodamos (ele no meu colo) e começamos a assistir ao espetáculo.

Tudo muito bom, tudo muito bem, peça regular, um pouco engraçadinha, filho vai ficando quietinho, prestando atenção, não pede mais para levantar e passear por aí. Eu, ligeiramente a fim de ver a peça e querendo mais ainda que o filho comece a gostar desse tipo de evento (confesso), interpreto essa quietude como um sinal de que o pequeno está curtindo. Pra não restar dúvida, pergunto: “E aí, está legal?” “U-hum, está sim, mamãe”. Ok, ótimo, ficamos então.

A peça, que já estava mais ou menos no final, termina uns 15 minutos depois. Mais do que rápido, filho levanta do meu colo e me pede pra retomarmos o passeio pela unidade do ponto em que paramos para ver o espetáculo. Nem uma palavra sobre o que acabou de ver. Perguntei algumas vezes sobre partes engraçadas, quis saber do que ele tinha mais gostado etc, e ele sempre fingindo que não estava ouvindo bem ou emendando uma outra pergunta, sobre qualquer outro assunto, na minha. Paro de insistir.

Voltamos para casa meia hora depois e, na hora de contar para o pai sobre o passeio, nem uma menção à peça. Eu digo: “Mas e a peça? Estava legal, não estava?”.

“Não, não gostei, não”.

“Ué, então por que você ficou? Por que quis ver até o final e não se levantou como a gente tinha combinado?”, pergunto, realmente surpresa.

“Porque você queria que eu visse, mamãe”.

Ca-ta-ploft!

Está aí: a gente promete que não vai sufocar os filhos com nossas expectativas sobre eles, com nossas ansiedades, com nossos desejos de infância mal satisfeitos projetados nos pequenos como se desejos deles fossem, mas, mesmo com todo o cuidado e com toda a sutileza, a gente acaba cobrando dos filhos que se encaixem num molde pré-desenhado para eles pelas nossas fantasias delirantes.

E os filhos, por mais que a gente fique atenta a isso, acabam tentando se encaixar nesses moldes. Não por desejo legítimo, mas por necessidade de serem amados e aceitos.

Uma parte considerável dessa necessidade de serem amados e aceitos dessa forma, ajustando-se às expectativas, é resultado direto de como a gente “educa” as crianças. Por mais que a gente reflita sobre isso e se policie (eu muito), toda a educação que a gente recebeu, introjetou e que por isso baseia inconscientemente a educação que a gente dá quando não percebe, quando não dá tempo de racionalizar, é baseada em julgamento e em condicionamento do amor (condicionamento do afeto, da apreciação, do “orgulho”, da valorização das crianças).

Quando criticamos alguma coisa “errada” ou elogiamos alguma coisa “certa”, estamos julgando ao invés de ensinar, julgando ao invés de compreender, julgando ao invés de acolher e ajudar. Diz Rebeca Wild, sobre as crianças (e pra mim isso vale pra qualquer ser vivo com autonomia de ação, até pra animais): “Quando se sentem bem, não se comportam ‘mal'” (sendo “mal” aqui uma coisa autodestrutiva ou destrutiva em relação a outros seres, à natureza, à vida). Mas ao invés de ajudar a sentir-se bem, a gente oferece julgamento.

E aí o julgamento é uma condição. O amor, a apreciação, o orgulho fica tudo condicionado. E mesmo que a gente não queira ou não sinta verdadeiramente isso, dizer: “filho, que bacana que você fez isso, que orgulho de você” ou “que pena que você fez isso, assim não é legal” é o mesmo que dizer: “não tenho orgulho do que você é, não acho bacana o que você é, mas sim algumas coisas que você faz que eu eu acho positivas e valorizo”.

Ou, em outras palavras, quando educamos pelo julgamento (positivo ou negativo), coisa que a gente acaba fazendo muito frequentemente, mesmo tendo consciência desse mecanismo, porque isso está em nós, no nosso subconsciente e molda a forma como aprendemos a enxergar a educação, as crianças entendem (corretamente, aliás) que há uma espécie de “nota de corte” no nosso afeto, uma linha que divide quem será amado de quem não será tão amado (valorizado, apreciado). E essa linha tem a ver com a satisfação das expectativas que temos dos filhos (porque estamos dizendo isso pra eles o tempo todo quando julgamos e botamos o referencial de julgamento em nós).

O poder do discurso materno (e paterno e de qualquer adulto que seja referência) é justamente esse: criar personagens para as crianças ao sabor do nós adultos julgamos ser o modelo ideal de ação (e nem estou falando de comportamentos mais cobrados socialmente ou que de fato tenham impacto social. Estou falando justamente das pequenas coisas também. Da expectativa que o filho goste de teatro, meu caso; da expectativa de que goste de ler, de que seja gênio na matemática, de que toque um instrumento muito bem, de que seja precoce, de que se destaque etc).

E as crianças passam a infância se enquadrando nesse modelo, a adolescência em conflito com ele (mas sempre submetidas) e boa parte da vida adulta, se sorte tiverem, no divã do analista tentando descobrir quem são de fato para além das personas que lhes garantiram as estrelinhas no caderno.

E a surpresa, no meu caso, foi dar-me conta de que, apesar de saber disso tudo, repeti o modelo e lá estava eu, sutilmente, pressionando meu filho a corresponder a uma expectativa minha. Tanto que ele percebeu (eu não) e se adequou. Inclusive esse é um outro grande problema: as crianças são muito mais sensíveis que nós. Elas percebem claramente aquilo que a gente não ousa pensar. Ouvem o que somos, não o que dizemos. Nosso inconsciente até pode se esconder de nós, mas jamais dos nossos filhos.

O “cataploft” foi um choque, e tive uma longa conversa com meu filho sobre isso, apenas para explicar o que tinha acontecido e deixar claro que eu sentia muito. Também tenho procurado estar mais atenta, mas é difícil pacas, assim como é difícil pacas encontrar e aplicar um novo modelo de educação que não se baseie no julgamento, no controle, na manipulação e na desconfiança da criança (como se ela precisasse ser consertada pelo adulto, esse sim perfeito).

É claro que esse exemplo da peça não é exatamente tão profundo e/ou fundador quanto o que acontece cotidianamente e a gente não vê, quanto o que quer dizer Laura Gutman quando fala do poder do discurso materno (expressão que “roubei” dela e que deu origem a esse livro aqui), quanto o que apontam, sobre esse tema, pessoas como Montessori, Alfie Kohn, Rebecca Wild. É “só” uma quase metáfora. Mas a metáfora tem o mesmo princípio que a realidade que ela explicita. E nisso consiste a validade de não subestimá-la. Até porque a realidade é mais difícil de enxergar.

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Instada pela escola do meu filho, reli esses dias dois textos bárbaros do Alfie Kohn, traduzidos pelo Gabriel Salomão (do Lar Montessori), sobre os elogios. Tem a ver com essa conversa aí de cima, na medida em que explicita que os elogios (e o “reforço positivo”) são a face mais sutil (e por isso mesmo perigosa) da manipulação, do afeto condicionado, da desconfiança e do desequilíbrio de poder que permeiam –infelizmente– as relações com as crianças.

Vale a leitura. Aqui e aqui.

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a nuvem cheia de água

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(*)

Ontem choveu. Na virada de 2014 para 2015, também. Muito. A ponto de passarmos quatro dias sem energia elétrica, às vésperas da festa de 31/1º. A “responsável” pela pane, segundo informações oficiais da companhia de distribuição de energia que atende meu bairro, foi a queda de uma árvore na rua de trás.

Responsável ou não, o fato é que a árvore caiu mesmo, logo no primeiro dia de temporal, talvez atingida por um raio ou derrubada pelas rajadas de vento. Junto com ela, só aqui pelas imediações, foram ao chão mais outras 10.

Filho, na época, ficou muito impressionado. Não apenas pelos muitos dias sem energia elétrica, mas principalmente pelas árvores gigantescas tombadas no meio das ruas. A maior delas caiu justamente na rua onde moram meus pais, paralela à nossa.

Voltando a ontem: fomos jantar com meus pais, na rua de trás, debaixo de chuva. Calhou de estacionarmos o carro bem em frente do que sobrou da árvore derrubada no final/começo do ano, da qual filho não se esquece. O que, naturalmente, não passou despercebido pelo pequeno.

–Mamãe, foi essa árvore que caiu naquele dia, né?

–Foi, sim, filho.

–Mamãe, será que vai cair mais dela hoje?

–Acho que não. A chuva de hoje está fraquinha.

–Mamãe, só chuvas fortes derrubam coisas?

Abri a boca para responder, mas parei. Parei porque me lembrei de que não quero dar todas as respostas. Não tenho todas as respostas. Não preciso ter todas as respostas. Meu filho não merece ser limitado por todas as respostas. Maternidade é sobre dar asas, não sobre fechar em gaiolas. Maternidade é sobre ajudar a descobrir o que os olhos do outro querem enxergar, não é sobre emprestar meu olhos para o filho ver o que melhor me apetecer. Maternidade é sobre poesia, sobre lirismo; não é sobre livro técnico nem sobre acúmulo de conhecimento racional. Maternidade é sobre sentir, não é sobre saber.

–O que você acha?

–Acho que precisa pesar a água na árvore pra derrubar.

–Hum, acho que sim.

–Mamãe, quando choveu aqui naquele dia, choveu em todos os lugares do mundo, até em outros países? Quando chove aqui, chove em todos os lugares do mundo ao mesmo tempo?

–O que você acha?

–Acho que não, mamãe. Acho que só chove no que está embaixo da nuvem cheia de água.

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(*) Daqui ó.

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criança não é pública # 2 ou: o que é filho “mimado”?

yara

Nos comentários do post anterior –e também em rodas de conversas virtuais ou presenciais com amigos– surgiu uma questão interessante sobre como equilibrar o respeito à subjetividade da criança e a necessidade de educá-la. A dúvida, basicamente, é: se eu respeitar meu filho nesse nível proposto pelo post e pelos textos recomendados, não estarei criando uma criança mimada, sem limites, sem educação?

O que penso sobre isso é basicamente o seguinte. Antes de qualquer coisa: o corpo de alguém é inviolável. Obrigar quem quer se seja a aceitar contato físico que não deseja é uma violência inominável. E o fato de questionarmos isso quando se trata de crianças (ou de mulheres, muitas vezes) já mostra bastante o tipo de sociedade que ainda somos. Não posso tomar para mim o controle do corpo de outrem, seja com a justificativa que for (educar, ajudar, ensinar, dar carinho, dar afeto etc). Se a escolha fosse (e não é, mas vamos fingir que seja) entre ter um filho mimado ou um filho cujo corpo não fosse respeitado, eu certamente optaria pela primeira opção. É muitíssimo mais pernicioso um adulto sentir-se “dono” do corpo de uma criança e essa criança ser alvo constante da violência de não poder negar um beijo do que um pequeno dar piti à toa na fila do supermercado ou não ser simpático com qualquer desconhecido.

Mas o fato é que respeito não se contrapõe à educação e a limites. É uma falsa dicotomia. Pelo contrário. Você pode e deve educar uma criança de forma respeitosa, respeitando os interesses dela, as inclinações dela, as preferências dela, os limites dela, o ser que ela é. Aliás, essa é a ÚNICA forma de se educar uma criança. Qualquer outra coisa é imposição por força e coação. Pode funcionar até a página dois, mas jamais merece o nome de “educação”.

Um adulto desrespeitoso, um adolescente complacentemente considerado “mimado” (desses que acham que podem espancar prostitutas ou empregadas domésticas em ponto de ônibus ou dar trotes violentos, abjetos e sexistas) com toda a certeza não são assim por terem sido respeitados, amados e bem tratados. Ter acesso a bens de toda a sorte e ter pais eventualmente omissos (duas coisas bem comuns entre os “bem nascidos” de classe média alta que fazem esse tipo de coisa) não é sinônimo de ser amado ou bem tratado.

De que forma desobrigar uma criança de três, quatro anos de aceitar o beijo à força de um estranho (ou mesmo familiar) pode resultar em alguém que não respeita os limites alheios? Não vejo como.

Pelo contrário. O que ensino ao meu filho quando digo que ele não é obrigado a abraçar quem não quer? Que ele também não tem direito sobre o corpo e a vontade do outro. Inclusive esse tipo de argumento uso com ele várias vezes. Por exemplo, quando ele se chateia com algum amigo que não quis brincar com ele. Sempre digo: “lembra quando fulano quis brincar e você disse que não estava a fim? Você não foi obrigado a brincar, certo? Então, agora é a mesma coisa”. E ele entende. E me diz um “é mesmo, né, mamãe?” bem tranquilo, satisfeito, sem sentir-se rejeitado e, plus, a partir dessa constatação, disposto de coração a respeitar o amigo que preferiu brincar com outro colega.

Respeito se ensina respeitando. Não tem outra forma.

Por que tratar um adulto com respeito e educação é o mínimo que se espera de alguém civilizado, mas quando tentamos fazer o mesmo com uma criança vira um “erro” ou algo que pode resultar numa criança “mimada”? Adulto tratado com respeito é “mimado”? Por que criança seria? Por que quando uma criança manifesta sua subjetividade e inclusive suas discordâncias, tachamos logo como “mimada”? Adulto que fala “não” educadamente é “mimado”? Por que criança seria?

Isso significa que meu filho pode fazer qualquer coisa? Não. Ninguém pode fazer qualquer coisa. Eu não posso, você não pode, meu filho também não. Respeitar uma criança –e mesmo um adulto e/ou a si mesmo– é colocar limites. Como diz Rebeca Wild, “viver é estar limitado”.

Não dar limites é um problema do adulto, não da criança. E não tem nada a ver com respeitar a criança e não obrigá-la a beijar quem ela não quer. Se um pai desiste, por exemplo, de limitar o tempo de exposição do filho às telas porque o filho está se jogando no chão da sala e dando escândalo, o problema é com o pai, não com o filho, percebe? Uma criança ainda está desenvolvendo mecanismos neurológicos para lidar com a frustração de modo menos estridente que jogar-se no chão aos berros. Mas o adulto deveria ser maduro o suficiente para: 1) tomar uma decisão ponderada, coerente, que faça sentido para o bem das relações familiares, para a harmonia entre todos, levando as necessidades de todos em consideração, 2) manter essa decisão (se a única razão para questioná-la for o chilique do filho) e 3) aguentar o choro da criança, ampará-la, compreendê-la, ajudá-la, de forma empática e amorosa, a lidar com a dor da frustração.

Se o adulto não tem maturidade para tanto –e isso também é uma forma de desrespeito à criança– isso não tem nenhuma relação com respeitar a individualidade e a subjetividade da criança.

Por outro lado, colocar limite não é colocar qualquer limite, só para marcar território, manter hierarquia, “mostrar quem manda” ou não “passar vergonha” diante de parentes e amigos. Limite não pode ser uma forma de exercer poder –e desrespeitar, portanto, pois todo poder é uma forma de desrespeito à essência alheia– tampouco um modo de extravasar raiva e frustração ou– talvez pior– adequar o filho às expectativas próprias e dos outros.

Colocar limites nos filhos é limitar-se a si mesmo, porque é preciso refletir sobre as razões daquele limite que se quer colocar. É um limite porque estou despejando minha frustração no meu filho? É um limite porque quero que a família se orgulhe de mim e aprove meu filho? É um limite porque a vizinha vai pensar que não sei educar meu filho se não fizer isso? É um limite porque eu tenho medo? Ou é um limite que realmente faz sentido para o desenvolvimento do meu filho? Ou é um limite realmente necessário para que eu possa estar presente e relaxada e manter o ambiente relaxado e adequado?

De qualquer modo, simplesmente não colocar limite nenhum ou deixar que escola, babá, avó, tio etc o faça não é respeitar. Quando se fala em respeito à criança, se fala justamente também nesse tipo de limite que esta exposto aqui. Funciona como numa relação saudável com qualquer adulto. O que é respeitar seu colega de trabalho? Deixar ele fazer o que quiser com você? Ou educadamente se colocar de forma adulta e madura, mesmo que isso cause um conflito? Conflitos são ótimos e necessários. Com os filhos inclusive.

O que não é ótimo nem necessário é obrigar uma criança de três anos a beijar quem quiser beijá-la.

Criança pequena ainda está aprendendo os códigos de conduta sociais; a maioria deles ainda não faz o menor sentido, entre outras razões porque a criança ainda reage muito baseada em estruturas “mais antigas” do cérebro, as únicas que já estão formadas. Então a criança raciocina pela autoproteção. Quer estar junto da mãe e de quem mais confie. E ponto. O resto é resto mesmo e não faz sentido ser simpática. Até porque as emoções nas crianças são percebidas de formas diferentes das percebidas por adultos.

Uma criança pequena não tem a capacidade de certas sutilezas, de elaborar emoções fortes e contraditórias, de reagir de modo plácido, verbalizando ou dissimulando sensações (e isso nem é ruim). Crianças são autênticas (o que é ótimo!), dizem o que pensam, fazem o que pensam. Não é um defeito. É um estado até neurobiológico. Que vai sendo burilado conforme a criança observa os códigos sociais, conforme recebe respeito e tratamento respeitoso dos adultos que ama, conforme vai completando seu desenvolvimento cerebral e neuronal.

Aliás, nós perdemos muito quando negamos essa autenticidade infantil, em nós e nas crianças. O mundo ideal seria, conforme as áreas mais “novas” do cérebro fossem crescendo e se desenvolvendo, que elas apenas ajudassem a elaborar melhor as emoções. Jamais a dissimulá-las, como acaba acontecendo. Mas isso é outra (fascinante) conversa.

O que quero dizer com tudo isso é: educar uma criança é respeitá-la, colocar limites e não esperar dela mais do que pode dar. A sociedade nos cobra filhos sorridentes e submissos. Como lidar com o amigo que vai em casa e torce o nariz se o filho “mimado” não o cumprimenta? Como lidar com a avó que quer abraços e beijos negados pelo neto? Como lidar com parentes nas festas que ficam apertando bochechas à revelia do desejo das crianças? Como lidar com a cobrança social e interiorizada por nós de que nossos filhos não sejam “mimados” (entendendo aqui por “mimado” o senso comum: um pequeno que não se submeta a caprichos adultos adultistas)?

Veja, é uma questão de escolha. Eu sou mãe do meu filho e é com ele que tenho responsabilidades. Escolhi assumir essa responsabilidade, mesmo que todo mundo ache meu filho mimado, chato, não educado. Se ser respeitado e exigir respeito, para as pessoas, é sinônimo de “mimado”, que seja. Paciência.

Para os adultos que estranham o comportamento do meu filho quando foge de investidas pseudocarinhosas, digo, com toda a educação: “meu filho não gosta de beijos e abraços”. E, sabe?, a maioria das pessoas entende. Acho que muita gente se lembra como era horrível, na infância, ser submetido a beijos e abraços forçados. Quem nunca fugiu de parente sem noção? Eu já, meu marido já, meu irmão já, meus primos e amigos e até meus pais. Obrigar criança a ser bacaninha não dá certo para ninguém. Por que manter esse modelo? Será que o adulto, quando confrontado com a negativa respeitosa, não vai compreender e rever seus próprios conceitos?

E, de mais a mais, quem é “mimado” e sem educação mesmo? A criança que exerce seu direito sagrado ao próprio corpo ou o adulto que, maduro, não consegue lidar com a “frustração” de não poder impor um beijo a um ser pequeno e indefeso?

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Recomendo muito a leitura de Montessori sobre esse assunto. Montessori, como ninguém antes dela, compreendeu, pesquisou e expôs o fantástico universo infantil. Ninguém antes dela respeitou as crianças como seres humanos que de fato são. E, apesar de achar que resultado não é o que deveria mover nenhuma relação, entendo a cobrança sobre nós pais e por isso digo: Montessori conseguiu resultados incríveis a partir do respeito genuíno à criança e aos jovens com quem lidou. Não só em educação formal, mas na reabilitação de adolescentes infratores “desenganados” socialmente pelas “autoridades” italianas. Foi exatamente lidando com um grupo de jovens infratores numa comunidade paupérrima e marginalizada que a psiquiatra italiana desenvolveu o método que depois ficou conhecido como “montessoriano”.

Para quem quiser começar com Montessori, sugiro o blog Lar Montessori. Sobre respeito incondicional e educação sem violência, é só ir direto a esse link e a esse também.

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Muito grata a quem questionou! 🙂

Oportunidade incrível de refletir, repensar e escrever aqui um pouco mais do que me move como mãe e como ser humano. Meu filho me dá todos os dias a oportunidade de repensar e reafirmar meus próprios valores sociais e políticos, meus compromissos comigo mesma e com o mundo que me cerca, a pessoa que vou sendo e construindo nas pequenas e grandes coisas do dia a dia. Ser mãe é um modo de estar politicamente no mundo. Ser mãe é um ato político. E meu ato político é, entre outras coisas, reafirmar diariamente o respeito, a empatia, o acolhimento que todos merecemos.

Sou muito grata também ao meu filho por isso! 🙂

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A ilustra é da Yara Kono e veio daqui ó.

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autoficção

Ela estava saindo do supermercado, satisfeita por ter encontrado tudo o que precisava numa mesma loja, evitando, assim, o desgaste e a perda de tempo de ter de ir achar o que eventualmente faltasse noutro lugar.

Salsinha, alho poro, batata inglesa, cenoura, suco integral de uva, um pacote de lentilha seca e outro de arroz. Tudo confortavelmente distribuído em duas sacolas retornáveis de ráfia, produzidas na China, que não custaram mais de R$ 2 cada uma (embora devessem custar bem menos, tendo em vista o que provavelmente recebem as mulheres chinesas que costuram as sacolas, pensou).

Distraída, comemorando que, afinal, não estava atrasada pela primeira vez em vários dias, já passava da metade do estacionamento, quase alcançando a fronteira entre a calçada privada e a pública, quando finalmente percebeu que alguém a estava chamando (“ei, ei, ei!”).

Olhou em volta e demorou outro tanto para reconhecer aquele rosto que sorria e a mulher cujas mãos acenavam, logo ali, à esquerda, alguns passos adiante. Era Eulália, moça, assim como ela própria, de uns trinta e poucos anos. Tinha dois filhos, um menino de cinco e outro de dois.

As duas moravam perto e encontravam-se sempre por acaso pelos estabelecimentos do bairro. Os meninos –os de Eulália e o dela própria—já haviam brincado juntos em algumas ocasiões, numas dessas vezes em que se encontraram por aí num golpe de sorte.

Abraçaram-se longa e afetuosamente. Afeto genuíno, apesar da pouca intimidade. Não se viam, seguramente, desde novembro e, àquela altura, janeiro já ia pela metade. Partiu dela para Eulália a pergunta convencional, automática:

-Oi, tudo bem? Como você tá?, disse, ainda enquanto desenlaçava os braços, sorrindo muito, algo empolgada (sinceramente empolgada).

Esperava um “estou bem. E você?” -que não veio. Eulália desfez ligeiramente (inconscientemente?) o sorriso receptivo com que conduzira o encontro até então e o transformou num mostrar de dentes quase sarcástico, meio de lado, meio nervoso.

-Estou levando, respondeu, desanimada. -Você sabe, né?, essa coisa dos dois anos, criança pequena…, olhou pra baixo. Como você conseguiu?, suspirou, sincera.

Ela assustou-se com a resposta-pergunta de Eulália. À princípio muito menos com o que estaria justificando-a do que com a quebra do acordo tácito segundo o qual esse tipo de pergunta (“oi, como vai, tudo bem?”), sendo relativamente vaga, superficial, automática e blasé, só pode ser respondida com o vago, superficial, automático e blasé já citado “estou bem. E você, como vai”?

Lembrou-se do Chico Buarque (“olá, como vai?, eu vou indo, e você, tudo bem?”).

Sorriu, meio envergonhada.

Pegou de surpresa a sinceridade. Uma mãe, ali na sua frente, sendo apenas um ser humano. Cansado, esgotado, um tanto perdido. Como de resto estão todos. Teria respondido, se pudesse, ao Pessoa: “aqui, aqui, aqui há gente no mundo”. Porque ela também sempre estivera –às vezes mais, às vezes menos– farta de semideuses.

Sorriu de novo, dessa vez sem pudores, e desejou abraçar Eulália de novo, só pela lindeza da cena, só pela coragem do gesto, só por ter se despido ali, assim, naquela ousadia de início de desabafo. As máscaras nunca dão conta da imensa beleza daquilo que escondem.

Concentrou-se novamente em Eulália ao perceber a expressão carregada, crispada, o silêncio pesado e a espera por algum acolhimento, algum conforto, alguma palavra que ajudasse a diminuir a pressão da qualquer coisa que agora lhe pesava os ombros duplamente (pelo que era e por ter sido mencionada a uma semi-desconhecida que emudecera e meio-que-sorrira em silêncio por longos cinco ou seis segundos).

Pensou que o filho a estava esperando para almoçar e ir para a escola. Mas uma certa urgência, uma necessidade, muito mais que uma opção, a colou no chão daquele lugar, daquele estacionamento, e mover-se para fora dali tornou-se quase fisicamente impossível.

Ficou para acalmar a mãe que ousava confessar sua impotência diante do filho (ou da maternidade?), ali, nas entrelinhas daquela frase, mas aos poucos notou que ficara para acalmar a si mesma, porque reconhecer-se naquela mãe e ver ali uma igual totalmente imperfeita e totalmente profana, como ela própria, era um alívio quase sem precedentes.

Quis mostrar, com certa ansiedade até, que entendia, que se irmanava, que se reconhecia naquela imagem aflita que via nos olhos da outra, que sim sim sim, qualquer que fosse a razão daquele “estou levando” e daquele “como você conseguiu?”, ela era justificada e a experiência era compartilhada, igual -mesmo diferente.

-Poderia dizer que não é fácil, porque não é mesmo. Mas seria lugar-comum demais, sabe?, disse, finalmente, pensando que uma conversa que começou tão promissora não poderia ser mantida na superficialidade. -A resposta mais honesta que tenho é: não faço a mínima ideia. Quase nunca sei com certeza o que fazer, como agir, e minha experiência é ligeiramente pendular: ora ajo assim, ora ajo assado. Mas sinto sempre que ora erro, ora erro também. Isso faz de mim o quê?

-Uma mãe?, arriscou Eulália.

Ambas riram. No começo aquele riso algo nervoso, algo contido, preso em um corpo rígido de tanta culpa. Depois o riso foi saindo pelos cantos, pelos olhos, pelos poros, escapando, relaxando um pouco os músculos e dando vazão a uma certa vergonha, gerada e gestada pela maternidade idealizada, sacralizada e, paradoxalmente, ególatra, que ocupa o imaginário coletivo, subverte arquétipos, enrijece afetos.

Depois, o que era fio de água virou rio caudaloso, e as duas moças gargalharam, sacudiram, trepidaram, estenderam-se e ensolararam-se de tanto rir.

E então veio um suspiro, seguido de um olhar camarada, cuja piscadela cúmplice não houve de fato, mas esteve subentendida o tempo todo e, talvez por isso, foi ainda mais presente e perene do que se tivesse havido, com a duração efêmera de seus dois ou três segundos.

-O maior é tranquilo, sabe? Mas o pequeno… Ele tem tanta energia, e é tão autônomo. Não dou conta. Quando eu vejo, ele já pulou na piscina, já caiu do sofá, já correu pra longe. Eu? Eu estou sempre no ainda. O menino funciona no já. Fusos diferentes.

Riram novamente.

-O meu já é desafiador. Precisa entender tudo e, mesmo assim, periga não aceitar. As negociações são intermináveis e, em algum momento, acabo me tornando, com frequência, a mãe que ameaça, a mãe que eu não queria ser.

-Ninguém é.

-O quê?

-A mãe que queria ser.

Riram.

A conversa foi seguindo, seguindo, seguindo, vida própria, asas próprias. Era quase possível ver angústias antigas ganhando asas e escafedendo-se junto com o vapor do hálito que escapava das bocas abrindo e fechando, das línguas subindo e descendo enquanto as palavras, aquele amontoado de sons que poderia não significar nada (literal e figuradamente), dava abrigo e fazia capa às culpas fugitivas, aladas.

De relatos e mais relatos -por vezes hilários, enternecedoras e acachapantes- de situações cotidianas, prosaicas e comezinhas da maternidade, ela e Eulália vagaram indistinta e não-linearmente por outros temas transversais. Sexo. Carreira. Dinheiro. Tempo. Livros. Vinhos. Louça suja. Máquina de lavar quebrada. Jornalismo. Design. Frilas. Teatro. A casa de co-work que abriu, cê viu?

O sol esquentava cada vez mais. As sombras sumiram. Devia ser meio-dia já quando Eulália e ela finalmente moveram-se, cada qual para um lado do estacionamento, em seguida cada qual para uma direção na mesma rua.

Ela voltou caminhando a passos largos. Olhara no relógio logo depois de se despedir e, de adiantada que estava, atrasara-se muito. Não daria tempo de o filho almoçar as lentilhas, tampouco conseguiria adiantar a sopa de batatas com alho poró. Mas as sacolas estavam mais leves.

Olhou para trás ainda mais uma vez, justo a tempo de acenar para Eulália, sorrir um sorriso cúmplice e tocar a vida.

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PS: escrevi esse post sob efeito de um alucinógeno -totalmente lícito, diga-se, embora tenha sido perseguido em Portugal. Alucinógeno esse popularmente chamado entre seus heavy users (eu inclusa) de “Saramáximo”, cujo nome científico é José de Sousa Saramago. Entre seus principais efeitos está uma comichão nas tripas, um encantamento arrebatador, às vezes lágrimas, outras tantas um desejo ardente de escrever, escrever, escrever. Causa dependência severa -de seus livros, de lirismo, de ironia, humor sagaz & crítico, de literatura e de lindezas de modo geral, seus principais princípios ativos.

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espelho meu

Cada um tem o filho que merece, dizem. E muitas vezes essa frase soa pouco empática e bastante acusatória, como se esse “merecimento” fosse um castigo. Mas gosto de enxergar nela outro sentido. As crianças interagem com aquilo que somos, não com as máscaras. Ouvem o que sentimos, não o que dizemos. Mais que isso: veem e respondem também àquela parte que somos mas não gostaríamos de ser –ou o que não somos, mas gostaríamos de ser. De modo que, em suas muitas demandas, acabam por exigir de nós que, pelo menos, reconheçamos o que nos falta, as nossas ausências todas, e a presença delas na medida em que nos limitam. Se estivermos abertos a isso, os filhos nos colocam em contato direto com nossas pretensas impossibilidades e, portanto, nos facilitam o caminho na direção de deixá-las menos “im”  e mais “possibilidades”. A potência tão à flor da pele nas crianças potencializa a potência em nós.

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No sentido contrário, também nós enxergamos nos filhos (e não só neles…) aquilo que não queremos ver em nós. Não vemos o que vemos. Vemos o que somos. Em boa parte das vezes em que reagimos com impaciência ou irritação às demandas dos pequenos, estamos reagindo àquilo em nós que nos negamos e reconhecer e que aparece clara e limpidamente no comportamento das nossas crias. Dito de outra forma, os filhos nos revelam duplamente a nós mesmos: quando nos enxergam como somos e se comunicam com o “outro” que vive em nós e também quando nós vemos esse “outro” refletido nas atitudes dos nossos filhos que tanto nos “provocam”.

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Faz um tempo, levei meu filho a um parque para andar de triciclo. A pedido dele. Chegou lá ele deu duas pedaladas, disse que estava cansado e propôs –meio “choroso”– que eu o empurrasse. Neguei, ele desistiu de brincar. Aquilo me irritou muito. O primeiro pensamento consequente à irritação foi algo como: “ele me faz andar de casa até aqui, nesse calor, porque quer se divertir e acaba sendo incapaz disso. Estou perdendo tempo! Me esforço à toa!”

Fui reconhecendo uma série de “sombras” nesse pensamento: 1) autopiedade e autovitimização.

2) O grau de empatia é quase zero. As palavras que qualificam o outro, no caso, meu próprio filho, são duras e injustas.

3) Eu, adulta, me coloco na condição de vítima da criança, como se a intenção do pequeno fosse realmente me provocar ou prejudicar e como se eu tivesse sido obrigada a acompanhá-lo ao parque ao invés de ter escolhido ou assumido a responsabilidade de fazê-lo como cuidadora que sou. Não fui ao parque coagida. Filho pediu e eu decidi ir, decidi assumir como tarefa de mãe –que de fato é– proporcionar essa oportunidade, percebe? Mas na hora de narrar esse, digamos, acontecimento, escolhi, ainda que inconscientemente, me “desresponsabilizar” e me colocar no papel passivo: “ele me faz vir (…)”.

4) Algo que fiz pelo meu filho e que é uma responsabilidade minha é encarado, talvez inconscientemente, como um favor, como um esforço ou uma concessão, pela qual a criança deveria ser eternamente grata. Superioridade condescendente. Adultismo. Não construí a narrativa como se eu fosse um igual que convive, que cede e negocia com alguém em igualdade (alguém que também me concede, talvez em maior medida inclusive), embora dependente. Mas como aquele que merece ser agradecido por outro pelo simples fato de existir e estar, momentaneamente, presente.

5) Refiro-me a tempo e a esforço como se lidar com outro ser humano e, nessa relação, assumir e cumprir responsabilidades e tarefas, conceder, agir para o bem do outro etc fossem espécies de “investimentos”. A pergunta é: fui ao parque para ver meu filho feliz e lhe garantir oportunidade de ser criança, brincar, experimentar a infância ou levei o pequeno para que ele cumprisse um determinado papel e alcançasse algum objetivo (andar de triciclo tantos minutos e, portanto, cumprir uma hipotética cota diária de atividades físicas para se encaixar em algum padrão)?

6) Do item 5 chega-se ao 6: se me filho cumprisse à risca a expectativa que eu criei, aquilo no qual afirmei que “investi” tempo e esforço, eu teria me sentido certamente uma “mãe melhor”, que tem um filho “feliz”, que brinca com seu triciclo o tempo “adequado” como qualquer criança “normal”.

7) A expectativa é uma merda. E recai sobre o filho porque, note bem no parágrafo anterior, é cobrança que faço a mim mesma. O “filho perfeito” que imagino faz sentido porque eu preciso ser “a mãe perfeita”, saca?

8) E, ao fim e ao cabo, o mais estarrecedor e talvez menos evidente à primeira vista, mas sem dúvida mais nocivo para a relação mãe-filho e o que mais contribui para uma desconexão e uma falta de presença minhas que, sem dúvida, contribuem para meu filho ser mais dependente (quando pede pra eu empurrá-lo, por exemplo) e menos consciente de si mesmo: o pensamento –a narrativa– gira 100% em torno do meu umbigo. Cadê meu filho –de verdade, não a ideia de um filho– em toda essa situação (desde a irritação e ao longo de todo o pensamento em que conto a mim mesma a razão da irritação)?

Ana Thomaz propõe um exercício (que ela chama de trabalho) muito interessante nesse sentido de expor, por intermédio do outro, aquilo que queremos evitar em nós. É um exercício de autoconhecimento, pois, como ela mesma diz aqui, neste vídeo, a gente não se isola pra se conhecer; a gente só se conhece em relação, na relação com o outro.

Depois de muito trocar sobre isso no grupo de mães e pais do qual faço parte no facebook, me decidi a ir testando esse exercício, que consiste, resumidamente, em: reafirmar a você mesmo as críticas que faz ao outro, como se elas fossem a você.

No caso da minha irritação com o pequeno, naquele momento no parque em que, ambos injuriados, começávamos a voltar para casa, eu classifiquei meu filho como “preguiçoso”. “Ele não se empenha, não se esforça, desiste facilmente ao primeiro obstáculo, mesmo querendo muito determinada coisa”.

Passada talvez uma semana desse episódio, foi quando finalmente reafirmei esse julgamento me colocando dessa vez como alvo não como juíza. “Eu não me empenho, não me esforço, desisto facilmente ao primeiro obstáculo, mesmo querendo muito determinada coisa”.

Então, começou um processo de autoquestionamento, muito sutil e até muito pouco racionalizado ou organizado Fui me fazendo perguntas, deixando algumas inquietações virem à tona e, ao mesmo tempo, deixei as questões todas e as angústias todas seguirem seu rumo, sem tentar encontrar as respostas a: que empenho seria esse? que esforço seria esse? em que medida? o que espero que eu mesma faça para sentir que me empenho e me esforço? pelo quê? que obstáculos são esses? quando desisti facilmente? de quê? o que desejo e não me esforço pra conseguir? qual é a insatisfação comigo mesma que afinal projetei no meu filho?

Segundo a criadora do “método”, Ana Thomaz, não é preciso fazer nada além de reconhecer a sombra refletida no outro para “limpar” as energias estagnadas e dar ao corpo (que ela define também como parte do inconsciente) a senha pra “trabalhar” a situação.

O curioso (pra mim que sou cética mesmo com aquilo que, como é o caso, faz sentido) é que “funcionou”. Reconhecer a “preguiça”, a falta de energia e de determinação –uma certa inércia em mim mesma– fez com que, à revelia de qualquer avaliação consciente ou racional, eu pusesse, sem ao menos me dar conta, diversos projetos que me são caros e que estavam parados novamente em movimento.

Ao mesmo tempo em que, ainda que fundamentalmente eu continue sendo a mesma pessoa, passei a ir pra relação com o filho sem essa “bagagem”, sem essas emoções estagnadas minhas –como a autocensura ou a “autoexpectativa” não atingida– que se interpunham entre a gente.

Deixei de lado uma certa irritação latente, que, como toda irritação latente, não fazia parte do meu encontro com meu filho, mas de minha relação primária mal resolvida comigo mesma.

Descobri, meio por acaso, na prática (e é sempre na experiência que aprendemos porque é na experiência que nosso corpo, nosso inconsciente, sente e elabora) que, ao se abrir aos filhos, ao que eles exigem de nós e também àquilo que exigimos deles (portanto ao nosso reflexo neles), nos franqueamos uma infinidade de possibilidades de autodescoberta e de incorporação da nossa “sombra” àquilo que de fato somos ou podemos ser.

O mais incrível? Depois que eu apenas reconheci que a irritação dirigida supostamente ao meu filho era, na verdade, uma irritação comigo mesma, o pequeno simplesmente abandonou o comportamento “preguiçoso” que me irritou –ou que serviu de veículo pra eu expressar um descompasso que estava relegado à sombra. Uma vez que me vi refletida e aceitei meu reflexo, deixou de ser necessário mirá-lo de novo e de novo e de novo. A ficha caiu.

******

“Quero ressaltar que não importa se nossa mãe (ou cuidadores) ‘fez tudo certinho’. Não importa se foi uma mãe fenomenal, calma, paciente, sacrificada ou justiceira. O que os filhos necessitam para criar seres alinhados com seu ser essencial e em profunda conexão consigo mesmos, é que seus cuidadores compreendam a si mesmos. Se não tivermos cuidadores adultos e maduros, consciente de seus próprios estados emocionais e sua história, essa sabedoria não será derramada sobre as crianças. Por isso, é pouco provável que as crianças quando cresçam olhem para suas vidas em estado de total consciência. Tornar-nos adultos é tomar as rédeas de nossas vidas, atravessar os bosques para enfrentar de frente nossos dragões internos, olhá-los nos olhos e ao final desse caminho cheio de perigos, decidir quem sou eu. A partir desse momento, seremos totalmente responsáveis pelas decisões que tomamos em nossas vidas em todas as áreas, incluindo a capacidade de não encerrar nossos filhos (se os temos) nos personagens que sejam mais convenientes para nós.”

Trecho do livro “La Biografía Humana: una nueva metodología al servicio de la indagacion personal”, de Laura Gutman, citado recentemente no facebook pela Anna Gallafrio.

 

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o choro e a chuva

(*)

(*)

–Não, mamãe, ele não chorou porque já é adulto, e adultos não choram.

–Por que você acha isso?

–Porque adultos já aprenderam que, se não der pra fazer, têm que tentar fazer de novo até acertar.

–Bom, adultos talvez não fiquem frustrados por não conseguir destampar um pote, mas ficam por outros motivos. Se para criança abir uma tampa é difícil, para um adulto pode ser igualmente difícil realizar um trabalho, por exemplo. E aí adultos choram.

–Mas adultos já sabem. Não precisam chorar. Só bebês e crianças choram. Porque eles não sabem.

–Adultos não sabem tudo. E choram muito também.

–Não choram nada. Porque eu não quero que os adultos chorem.

–Você ficaria com medo se eles chorassem? Se sentiria assustado? Desprotegido?

–Com medo. “Despotregido”.

–Você acha que chorar é uma coisa feia ou errada? Ou que quem chora é frágil? Que adultos que choram não podem te proteger?

–Não sei. As mães às vezes falam que a gente não pode chorar. Não querem que a gente chore.

{Eu, a mãe em questão, quase choro, ali, bem na frente dele, bem na hora}

–É que os adultos –e as mães– erram, filho. Erram muito, erram feio. E falam muita bobagem, como isso.

******

Peguei ele no colo, coloquei bem do meu lado na cama, olhei bem nos seus olhinhos brilhantes e confusos. Ficamos um bom tempo assim, só eu e ele. E então foi que pensei na chuva. E no choro. No choro como chuva, como uma descarga elétrica emocional tão necessária para aliviar nossos sentires quanto a chuva o é pra água aliviar-se cá pra baixo.

–Sabe quando a nuvem fica cinza escura e você diz que está cheia de chuva?

–Ã-hã.

–O que acontece quando a nuvem está bem bem bem cinza e bem bem pesada?

–Chove.

–Chove o quê?

–Água, ué.

–É igual o choro.

Ele me olhou e sorriu, interessado. Curioso.

–Quando você está triste ou frustrado ou com raiva, você se sente mal?

–Ã-hã.

–Parece que tem assim uma coisa meio desconfortável crescendo bem no meio da sua barriga?

–Parece. Eu sinto mal.

–Essa coisa é como se fosse uma nuvem, que vai enchendo, enchendo, enchendo dessas sensações até ficar cinza bem escuro, como a nuvem. Aí precisa chover. E aí você chove.

–Aí eu choro?

–Isso, querido, aí você chora. Quando a nuvem estiver cinza, chore.

Ele sorriu, pediu pra dormir abraçadinho e dormiu.

******

E eu perdi o sono. Quando é que passamos a ser tão babacas? Quando é que passamos, assim, definitivamente, a não acolher mais nada nem ninguém? A ignorar o que há de mais puro, mais belo e mais genuíno? Quando é que passamos a tirar dos filhos o direito de chorar –e não apenas de expressar emoções, mas principalmente de extravasar esses sentimentos? São cri-an-ças. Crianças lidando com um mundão de sensações novas e assustadoras. E não podem sequer chorar. Por que nós, os “adultos” supostamente maduros, não aguentamos um pitizinho. Ta-que-pa-riu!

Choram porque não abriram sozinhas a tampa da tinta guache. Sim! Com todo o direito e toda a razão do mundo. Porque é foda ser criança, ser pequeno, sentir-se indefeso e dependente e não conseguir sequer destarrachar uma porra duma tampinha ridícula. São crianças, mas não idiotas. Sabem-se crianças. Sabem-se limitados pacas em muitas coisas que gostariam de fazer. E foda-se que temos pressa e achamos que chorar pela tampa não-aberta é frescura. Frescura é a nossa, que reclamamos –como o bando de adultos mimados que na verdade somos– por ter de lidar com o sentimento de frustração tão genuíno quando, do alto da nossa “importância”, sequer conseguimos ser empáticos com a dificuldade sincera dos nossos filhos.

Pior que não abrir uma tampinha de guache sozinho –coisa pra qual uma criança pequena realmente ainda não tem força e habilidade suficientes– é essa sensação de ter força e habilidade, mas mesmo assim não fazer. Por cegueira. Por preguiça. Por adultismo.

Quanto de abandono e repressão ainda seremos capazes de impor? Quão babacas ainda seremos? Por quanto tempo? Quanto choro nosso foi brutalmente reprimido quando éramos crianças? Quando finalmente cresceremos e nos tornaremos adultos a ponto de acolher as crianças –as que fomos, as que somos e as que geramos?

Vou lá ver a lua –dizem que está linda– que aqui dentro agora chove um bocado.

(*) “Rain”, de Dario Moschetta, veio daqui.

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a biblioteca pública e a naturalização do consumo

#artederua,  SP

#artederua, SP

Certas “lógicas” vão se naturalizando sem que a gente se dê conta, mesmo que a gente fuja de todas as formas conscientes dessa naturalização, daí a dificuldade em quebrar os círculos viciosos. Por exemplo: nesse domingo, meu filho esteve pela primeira vez numa biblioteca pública. Por lá folheamos diversos livros, lemos algumas historinhas, e ele gostou muito de uma delas. Quando estávamos pra ir embora, ele pediu que eu comprasse o livro preferido.

–não dá, filho.
–por que não? você não tem dinheiro?
–não é isso. é que esse livro não está à venda.

Me olhou com espanto. Li nos seus olhinhos a dúvida. #Comassim não está à venda? Tem alguma coisa que não esteja à venda?

Fiquei alguns segundos tentando entender a fala dele, a surpresa dele e que discurso –ou realidade– estava implícito naquele espanto. Foi então que percebi. E entendi. E foi aí que ficou claro pra mim esse processo de naturalização, de naturalização do consumo como mediador e provedor das relações, dos prazeres, do ócio, do acesso, da vida; o processo de “coisificação”, “precificação” e “possessão” de tudo, como se viver estivesse à venda (e de fato está, se a gente pensar que até a água, mineral essencial pra vida, é hoje considerado um “bem privado” pra muitas empresas e pessoas).

Meu filho estava naturalizando o consumo como regra.

E, sabe?, nós aqui em casa refletimos muito sobre isso e tomamos muitas medidas práticas pra permitir uma infância menos mediada pelo “ter”. Enzo assiste a pouca TV –o mínimo possível– e quase nada na TV convencional (nem aberta nem fechada); o que rola aqui com mais frequência é Netflix, sem propaganda e oferecendo certa autonomia aos pais para programar aquilo que os filhos vão ver e quando.

Raramente frequentamos lojas de brinquedos e, quando vamos a alguma, sempre escolhemos a de brinquedos educativos, pequena, de bairro. Presente também é o tipo de coisa que damos com parcimônia e agora temos preferido fazer coisas ou construir brinquedos ao invés de comprá-los prontos.

Não estimulamos personagens licenciados por aqui. Enzo já viu e quis “pocoyos”, já viu e achou super legal bonecos dos Backyardigans, já ficou todo empolgado com uma mochila da Dora Aventureira. Confesso que, ali na hora, no calor do momento, diante de olhinhos faiscantes, pedintes e felizes com a possibilidade de materializar um pouco mais um personagem que é muito caro ao pequeno, dei uma balançada. Em muitos desses momentos hesitei em negar e me peguei quase abrindo a bolsa e botando a mão na carteira. É só um boneco. É só uma mochila. É só um brinquedinho. Mas resisti, porque sei que não é só um brinquedinho. 

Marido e eu compramos pouquíssimas coisas pra nós. O básico, o necessário. Acho que filho deve ter me visto em lojas meia dúzia de vezes, quando muito.

Mas o fato é que, apesar disso, a vida que levamos é quase toda mediada pelo consumo. Enzo sempre testemunhou processos em que a regra foi: quero uma coisa, essa coisa tem um valor monetário, se tenho esse valor vou lá e compro. Tudo o que ele tem hoje e com o que se identifica, lhe foi comprado, muitas vezes na presença dele. E mesmo quando não ganha o que pede, a situação remete ao consumo, pela negação ou impossibilidade dele (como a pergunta que o filho me fez na biblioteca deixa muito claro): “não vamos levar isso hoje porque não temos dinheiro para pagar”. Pela sua experiência e experimentação –que é como ele aprende e apreende o mundo– tudo é objeto à venda. Tudo tem um preço a ser pago, e a distância entre o desejo do filho e ele, entre o objeto e a posse –objeto x posse dá outro post, aliás– se traduz em uns quantos reais.

Então que, nesse contexto, não levar à rede de lojas de brinquedos infantis e privilegiar o educativo, o artesanal, o de madeira, o sem pilha-nem-bateria, o orgânico, o que possibilita mais criação, é ótimo. Mas continua sendo consumo. Evitar as propagandas da TV e os programas infantis que estimulam o consumismo é lindo. Mas não evita o contato com o consumo excessivo promovido por nós mesmos –os adultos– sem perceber nem querer. Não comprar licenciados para não inserir o filho na louca roda das porcarias criadas exclusivamente pra arrancar dinheiro e parte da infância das crianças (se acha que exagero nessa descrição, por favor, leia isso aqui) é uma decisão política da qual sou muitíssimo convicta. Mas não é suficiente. Não tem sido suficiente. Porque nós –minha família e quase todo mundo que conheço– vivemos a maior parte do cotidiano comprando coisas e fazendo coisas que precisam ser pagas.

1) Não estou dizendo que a “culpa” seja 100% nossa. Existe um contexto, uma localização geográfica, uma inserção cultural e social, uma época, uma perspectiva etc que favorecem ou não atividades comunitárias e bens compartilhados.

2) Tampouco estou dizendo que para remediar a situação, quebrar o círculo, reduzir a importância do consumo e a sua naturalização como se fosse de fato parte “natural” da vida –e não apenas uma criação social e cultural de um dado momento histórico– seja preciso parar de consumir completamente. Neste momento, no mundo em que vivo, consumir é parte essencial da vida, goste-se mais ou goste-se menos disso. E há muitíssimas “camadas” de consumo. Comprar feijão pra matar a fome é muitíssimo diferente de gastar pequenas fortunas em carros esportivos. Há o consumo. E há o consumismo. Que é bem outra coisa.

lindezas do argentino Decurgez (*)

lindezas do argentino Decurgez (*)

Mas é preciso –e possível e desejável e altamente prazeroso (porque prazer é essencial)– primeiro refletir sobre esse consumo. Depois reduzir esse consumo. E em terceiro –e aqui é onde a gente falha miseravelmente– promover cada vez mais espaços, situações e interações absolutamente não mediadas pelo consumo.

Passeios no parque são de graça, são comunitários, os “bens” estão lá para serem compartilhados. É uma coisa que minha família fez muito pouco até agora, mas que estamos mudando –e o movimento nesse sentido começou pouco antes da já mencionada primeira ida à biblioteca pública.

Praças, ruas, centros culturais estão aí pra serem ocupados, aproveitados, fruídos. E, sabe?, eu que sou louca por um café na rua, por sentar e tomar um chá num lugar agradável, preciso começar a refletir seriamente sobre como meu filho analisa e capta esse meu hábito. Podemos ir a um café ou tomar um suco na padaria (coisas que Enzo ama). Sim, é claro! Mas também podemos levar chá de casa (como já fizemos quando ele era bebê), frutas secas, biscoito caseiro e simplesmente ocupar um espaço público sem pagar nada pra ninguém.

Visitar amigos, parentes, pessoas queridas. Compartilhar mais refeições. A gente raramente faz isso, o que é péssimo, ainda mais com meu histórico de infância italiana na casa do avô napolitano, em que compartilhar refeições deliciosas era lei, era regra. E era das coisas mais afetuosas da vida!

Outro ponto fundamental: vou muito com meu filho a livrarias. Compro muitos livros pra ele. Na verdade, jamais neguei um livro sequer. E compro por conta própria vários de que gosto sem nem perguntar antes se ele “achou legal”. Como nunca pensei antes em levá-lo a uma biblioteca pública? Como ainda não tinha pensado em inscrevê-lo –e a mim também– em bibliotecas e programas de empréstimo de livros? Pra falar a verdade, essa nossa primeira ida a uma biblioteca foi absolutamente não proposital. Cruzamos com uma no caminho, achamos bacaninha e resolvemos entrar.

Penso, hoje, depois de meu filho ter revelado tão ingenuamente a naturalização do consumo que existe em mim, que é difícil, mas urgente, repensar muito mais do que apenas a superfície. É clichê, mas é verdade: sair da zona de conforto. Porque, sinceramente, não assistir a TV, não ter uma coleção de licenciados, não gastar dinheiro com as porcarias plásticas que piscam-deitam-rolam-e-tocam-música na loja da rede, privilegiar brinquedos artesanais, tudo isso me deixa absolutamente confortável. É um tipo de atitude política muito fácil pra mim por causa de uma série de preferências –estéticas até– e de uma série de convicções. Mas é limitada e serve muito mais como uma limpadora de consciências –a minha, no caso– do que de fato como uma alternativa ao consumo non stop em que se vive. 

Prova disso eu tive no domingo.

No entanto, privilegiar de verdade o não-consumo e procurar reduzir de fato as atividades consumo-mediadas, aí sim, confesso, vai me incomodar, vai me desalojar, vai me confrontar. Porque a naturalização do consumo é minha também, não apenas da “sociedade”, essa entidade mística que a gente ama culpar, mas que não existe por si só. Há o grupo, mas há também responsabilidades pessoais e a nossa parcela de consentimento e omissão –ou não. E há coisas que definitivamente precisam ser desnaturalizadas. Porque meu filho não é target de publicitário ou indústria de brinquedos. Porque eu não sou público-alvo. Porque é preciso, cada vez mais, que as crianças –e nós adultos– sintam e percebam que há vida pra além do que pode ser pago, do que está a venda, do que pode ser possuído. Na verdade, talvez só haja vida aí, nesse lugar onde não é preciso ter nada. Porque todos somos.

(*) Mais sobre o talentoso artista argentino Guillermo Decurgez aqui ó.

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o momento especial

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Recentemente, fiz um curso para aumentar a conexão e melhorar a relação com meu filho, organizado pelo Marcelo Michelsohn e baseado em princípios de “parenting by conection” (dê uma olhada no site da organização Hand in Hand Parenting, da Patty Wipfler) e de educação ativa (Margarita Valencia, Rebeca Wild e a experiência no Pestalozzi do Equador).

Marcelo é “pai ativo” há alguns anos e está reorganizando novamente a vida profissional para compartilhar suas experiências e aprendizados com outros pais e –principalmente– para estar mais presente na vida dos dois filhos pequenos. Fiz uma entrevista recente com ele, publicada no Mamatraca, que pode ser lida aqui ó.

Optei pelo curso –depois de virar leitora assídua do blog do Marcelo– principalmente porque a “fase da birra” é mesmo extenuante emocionalmente (para os filhos principalmente, sejamos sinceras, mas nós sucumbimos primeiro, afinal nunca nos ensinaram a lidar com nossas próprias emoções), e eu estava me tornando a mãe que se afasta ou a mãe que chilica, ambas opostas à mãe que desejo ser e que meu filho merece -e de que precisa.

Curso ótimo, me ensinou muito sobre as crianças, sobre como lidam com sentimentos, sobre como evidenciam nós que os adultos ainda precisamos resolver em nossas próprias bases emocionais e padrões mentais, sobre como se comunicam e sobre do que precisam. 

Plus é que Marcelo dá diversas referências para quem quiser se aprofundar. Já assisti a um webnário da Patty Wipfler e estou lendo –com muito entusiasmo, porque é ótimo– o “Etapas del desarrollo” (estapas do desenvolvimento) da Rebecca Wild. Vai virar uma resenha pro blog, mas, desde já, recomendo.

Dentre muitas práticas cotidianas que Marcelo apresenta e sugere que usemos na relação com nossos filhos, há uma chamada “Momento Especial“, que consiste em oferecer aos filhos (a um deles de cada vez) algum tempo diário de atenção exclusiva, de forma presente e entusiasmada, vivendo, de fato, o presente (quem leu Laura Gutman ou Carlos González vai se lembrar de que eles sugerem coisas do tipo também). Nesse momento, vale fazer qualquer coisa que o filho queira. Ele manda na pauta.

Não há exatamente um objetivo com essa ação, faz-se pelo processo: estar com os filhos, demonstrar interesse genuíno, compartilhar momentos importantes, conectar-se. No entanto, arrisco que há –digamos– efeitos colaterais, tais como aproximar pais e filhos, aumentar a intimidade, a confiança, a compreensão, a comunicação.

Comecei a fazer isso com o meu filho há cerca de dois meses e quero relatar o que aconteceu já na minha primeira experiência, porque foi muito surpreendente e revelador.

………………………….

Faz um tempo que percebi que quando começamos bem o dia, tendo estado juntos de fato ao acordar, as coisas fluem muito mais facilmente ao longo do dia, tanto pra mim quanto pro filho. Então resolvi ir por esse caminho e oferecer um tempo só pra ele, logo cedo.

Expliquei a ele que teríamos quinze minutos pra fazer qualquer coisa que ele quisesse. O primeiro pedido: “vamos sair!” Argumentei que não daria tempo, que ele escolhesse algo para fazermos em casa. “Ler o ‘Livro da Chuva’”(**), pediu. Sentamos no sofá e imediatamente ele mudou de ideia: “Mamãe, quélo pintar o sofá com giz pastel”.

Isso veio à tona porque ele havia ganhado o giz pastel dois dias antes, quis desenhar no sofá assim que abriu a embalagem,  não deixei. Na hora em que neguei, ficou bravo, jogou vários longe, mas não chorou.

No dia dessa primeira experiência de Momento Especial, novamente trouxe essa proposta, respondi que usamos apenas papel para pintar. Sugeri colocarmos as folhas sobre o sofá. Ele saiu bravo.  Mas não chorou. Insisti no limite. Se fechou no meu quarto, me mandou embora, mas não chorou. Agachei e fique do lado de fora, porta encostada, falando que ficaria ali esperando por ele. Baixou a guarda, abriu a porta, sentou no meu colo. Quis saber por que não poderia pintar com giz no sofá. Não falei muito (hoje sei que explicar não é tão bacana para crianças pequenas), mas expliquei. Ele se satisfez, voltou pro sofá querendo novamente ler o “Livro da Chuva”.

Zerei o cronômetro e resolvi recomeçar o Momento Especial. Pegamos o livro e li duas ou três vezes, conforme ele foi pedindo “mais”. Na hora em que anunciei que teria de levantar para terminar o meu café e para começar minhas tarefas do dia, ele, contrariado, reparou no barulho do chuveiro (marido estava tomando banho para sair) e começou o diálogo inesperado:

“Ah, mamãe, não! O papai está tomando banho! Não quélo que ele tome banho!”

Antes do curso, talvez eu tomasse isso como um pedido deslocado ou achasse simplesmente que ele implicou com o chuveiro ou com o banho ou com o pai sem motivo aparente. Talvez achasse que implicou com qualquer coisa para tentar “atrasar” a retomada das minhas tarefas. Talvez eu ficasse intimamente irritada. Não que fosse deixá-lo falando sozinho, mas certeza que não continuaria o diálogo tão tranquila e tão presente quanto fiz nessa ocasião.

“Por que não, filho?”

“Por que ele vai trabalhar! Não quélo que ele trabalhe!”

“Você sente falta do papai durante o dia?”

“É!”, disse, quase chorando.

“Queria que ele ficasse em casa?”

“É.”

“O que você gostaria de fazer com ele se ele pudesse ficar?”

“Brincar de ‘papai bagunçou’” (é uma brincadeira só deles. Eles vão pro meu quarto, geralmente quando Dri chega à noite, e bagunçam tudo enquanto fingem arrumar minha cama. Fazia muito tempo que não brincavam disso, retomaram justamente duas noites antes do Momento Especial).

………………………….

Foi assim, sem mais nem menos, que meu filho verbalizou a saudade que sente do pai, coisa que nunca fez. Foi assim também que deixou entrever como sentiu falta do pai nesse período em que eles pararam a brincadeira (ficaram uns bons meses sem brincar de “papai bagunçou”).  A gente vinha reparando que Dri e ele estavam se afastando. E por isso resolvemos retomar a brincadeira noturna diariamente. Mas não imaginei que o efeito “reconectador” fosse tão imediato, que o “papai bagunçou” fosse assim tão importante para a relação deles.

E só fiquei sabendo disso porque, surpreendentemente pra mim, logo no primeiro Momento Especial, Enzo já se sentiu à vontade para dividir esses sentimentos. E fui para esse encontro com ele sem expectativa de coisa nenhuma. Não esperava nem que a gente realmente conseguisse fazer um momento relaxado e verdadeiramente especial logo na primeira tentativa. Porque parece meio óbvio que as crianças precisam desses momentos de dedicação exclusiva e entusiasmada. Mas dificilmente a gente consegue fazer isso normalmente. A gente se dedica pacas aos filhos, mas, em geral, fazendo outra coisa, como trabalhar pra pagar a escola, preparar o almoço, dar um banho, fazer as compras de alimentos etc.

Num dos trechos que mais me marcaram em “A maternidade e o encontro com a própria sombra“, da Gutman, ela desafia os pais a: 1) lembrarem quando foi que conseguiram passar ao menos 15 minutos dedicando-se integralmente e entusiasmadamente aos filhos, sendo companhia pra eles e 2) passarem esses 15 minutos, ao menos, diariamente com os pequenos. Foi a primeira vez –quando li esse trecho– que me dei conta que estar presente é muito diferente de ser presente, de oferecer presença, de fazer-se presente do ponto de vista da criança.

O que ficou muito claro dessa experiência inicial do Momento Especial pra mim é que as crianças sabem perfeitamente como se comunicar, como se expressar. Precisam apenas sentir que há ouvidos. E essa segurança, essa sensação, está diretamente ligada ao vínculo, à conexão, à qualidade da relação em cada momento. A criança precisa sentir que está amparada pra abrir o coração (como todos nós, aliás). E essa abertura não se dá num momento pré-determinado, como muitas vezes com adultos, mas no momento em que a criança sente a conexão mais potente. Por exemplo depois de uma entrega mater/paterna genuína, integral, entusiasmada, como é o caso do que se faz no Momento Especial.

………………………….

(*) A imagem vem daqui (loja do Etsy) e é uma aquarela da artista israelense Liz Kapiloto.

(**) “Livro da Chuva” é como meu filho chama o “Poesia na Varanda“, de Sonia Junqueira e Flavio Fargas.

 

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estreia no mamatraca

Hoje estou lá no Mamatraca, da querida Anne Rammi, estreando uma coluna quinzenal de bate-papo sobre o universo materno/paterno fora da caixa. O primeiro entrevistado é Marcelo Michelsohn, consultor independente e fundador do Conexão Pais e Filhos, além de editor do blog homônimo. Ele falou lindamente sobre educação ativa, conexão, respeito, emoções e confiança –nos filhos, na vida.

Nossa sociedade escolheu um caminho que exige seres humanos dóceis, que sejam bom trabalhadores por um lado, e insatisfeitos e consumistas por outro. Crianças que crescem sem ressentimento, com as emoções fluindo e experimentando a vida como algo perfeito, sem faltas, não são boas matérias primas para essa sociedade”

Bóra ?

 

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